quinta-feira, 21 de junho de 2012

Pílulas do Cenas Curtas

por Viviane Velano


Com o aval do público, o 13º Festival de Cenas Curtas do Galpão Cine Horto apresentou uma de sua melhores edições, neste ano. O Festival é voltado para a experimentação, e, assim, artistas de vários lugares do país trazem seus espetáculos  para serem apresentados num verdadeiro caldeirão de público, com direito a voto. Como experimentar, arriscar, evidenciar conceitos, levantar questões, finalizar ou não, envolver a plateia? E tudo isso em 15 minutos? Este é o desafio.

ACORDA, AMOR!
O que é preciso para contar uma história?
Na primeira noite do Festival de Cenas Curtas do Galpão Cine Horto, Acorda, amor! surge singela e despretensiosamente, apresentando-nos um cenário nu e o solo de um atriz. É a segunda cena da noite.

Uma atriz uruguaia, cujo sotaque cria uma nova linguagem para o espetáculo, se revela em  seu figurino branco, com uma sanfona nas mãos, entoando uma bela canção. Ela vem nos contar uma história que conhecemos, desde a infância: A Bela Adormecida. E como contar uma história infantil, notavelmente conhecida, a uma plateia de adultos?

Florencia Santángelo parece não se intimidar por esse aparente desafio. Inicia sua encenação apresentando sua história com naturalidade e, assim, vai desenrolando os acontecimentos, dando destaque aos pontos mais significativos - como o nascimento da filha do rei e da rainha, que surge claramente num abraço singelo ao seu joelho -, e criando personagens - alguns interpretados, outros ilustrados com gestos precisos ou alguma entonação mais grave ou aguda na voz, e muitos através da participação dos espectadores, que são pegos de surpresa ao serem apontados, por exemplo, como o poodle preferido da rainha. Já envolvida emocionalmente pela história e sua empolgante narrativa, a plateia tem ímpeto de participar do processo e o faz num grito de viva, incitada, é claro, pela atriz, que parece ter mesmo saído daquele universo de magia.

A atriz consegue alcançar, sem invadir, o imaginário de cada um de nós, nos remetendo a uma época longínqua, mas encantada, ilustrando com os mais simples gestos o que se transforma em uma gigante encenação. Ao narrar a história ela vai construindo aos poucos um cenário lúdico e de fantasia. Assustador, também; afinal, o medo permeia os contos de fada. Em menos de um minuto de peça, a atriz já tem a plateia como sua aliada, com sua interpretação apaixonada, cheia de entusiasmo, com pitadas de bom humor e inserções do clown, e, dali em diante, passa a imprimir sorrisos nos rostos de cada um, muitos, até, emocionados por uma Bela Adormecida nunca ouvida antes. O palco ficou pequeno para Florencia.

Com direção de Marcos Camelo e Patricia Ubeda e supervisão de Julio Adrião, Florencia Santángelo cria uma dramaturgia com notável domínio das palavras. E nos mostra que 15 minutos são suficientes! A atriz cursou Letras e já participou do Oficinão, projeto realizado anualmente pelo Galpão Cine Horto, em 2004. Hoje, mora no Rio de Janeiro, onde realiza seus trabalhos com os Doutores da Alegria – por isso tanta referência do clown nesta cena.

O QUE NÃO VAZA É PELE
Na primeira noite de apresentação do Cenas Curtas, Alexandre de Sena, Byron O’Neill, Jésus Lataliza, MC Matéria Prima, Gustavo Bones e Mariana Maioline concebem uma cena sobre outras causas e  outras bandeiras. Os quatro primeiros atores, aqui atuantes, contam, em tom de fábula, sobre acontecimentos de uma cidade fictícia, Clarimanha – onde todos são de cor branca, com todas as suas variações, de gelo a neve, e não conseguem lidar com o diferente, com o “de cor”. A dramaturgia, desenvolvida a partir da narrativa e do distanciamento Brechtianos, foi inspirada em um fato real, de discriminação e racismo, acontecido com o ator Alexandre de Sena, que foi violentado física e moralmente, no ano passado num Festival de Teatro, em Blumenau – SC. Mas a cena extrapola essa questão, propondo uma reflexão sobre vários outros problemas, descasos, impunidades, excessos e abusos que acontecem em qualquer lugar - na esquina de sua casa ou em uma praça pertinho de você -, com a narração ou inserção bem humorada de alguns nomes ou acontecimentos recentes de Belo Horizonte, que, não por acaso, tornou-se hoje um lugar de efervescência de movimentos populares, já que sua atual administração insiste em manter uma postura autoritária e sem diálogos com a população, em qualquer esfera.  E assim, tentam evidenciar que o mundo ainda se pauta por valores vis e reforçam seu discurso com a formação de um impactante quadro com várias pessoas invadindo o palco e levantando suas bandeiras, o que mais pareceu um impulso individual às provocações.

SINTO MUITO: ACABARAM-SE OS PÃES
Sinto muito: acabaram-se os pães começa com uma tensão instaurada já na montagem da cena – a atriz que é cuidadosamente colocada em um balanço muito alto e um aquário que se revela guardar não um peixinho, como no cartaz, mas um homem. A última cena da primeira noite revela-se plasticamente mergulhada no universo infantil, mas propõe a discussão sobre o término de um relacionamento. Com uma trilha lúdica, concebida por Rafael Nelvam, ela nos remete à relação através da história de uma menininha, interpretada por Carol Oliveira, com seu “peixinho”, interpretado por Rafael Lucas Bacelar, demonstrando o estado de poder já impregnado: ela tem o alimento, ele, seus truques; ela quer ver o truque, ele tem fome; ela o ama; ele tem fome, mas a ama, também. E, assim, vai levantando questões íntimas presentes em qualquer relacionamento, fazendo-nos questionar sobre suas deficiências, suas lacunas e suas bengalas, finalizando com uma tocante interpretação do ator Marcelo Veronez.

O CIRCO DE SOLEINILDO
Na terceira noite de apresentação do Cenas Curtas, o grupo baiano de O Circo de Soleinildo nos faz imergir por completo no universo circense de viagens, escassez de público, dificuldades do dia-a-dia, com um cenário construído por objetos bucólicos e artesanais, num tom já sujo pela terra da estrada, além de nos apresentarem um semblante carregado pela tristeza que permeia esse lugar. As personagens de Kecia Prado, Cristiano Martins, Iara Barbosa e Isac Flores não se exprimem pelo texto, mas por uma linguagem gestualmente expressiva, reforçando ainda mais o lugar do oprimido, marginalizado, sem voz. Em um “golpe de sorte”, as personagens transformam, ao acaso, este desconhecido Circo de Soleinildo, no “Circo de Solei” – ao pintarem parte do letreiro - e isso muda completamente aquela rotina pacata e sem graça dos artistas em um movimentado espaço de trabalho, em que podem mostrar seus truques e magias a uma inusitada plateia. Até que o velho palhaço Soleinildo, dono do circo, entende o equívoco... Um teatro gestual e pautado na simplicidade questiona o lugar dessa arte de indústria, de superprodução, que aparentemente oprime a delicadeza e pureza dos circos de antigamente.

VIOLENTADOS DA PÁTRIA
A primeira cena da última noite do Festival de Cenas Curtas do Galpão Cine Horto propõe uma construção mais intimista da relação com o público, colocando parte da plateia lateralmente e formando uma espécie de corredor para sua passagem. Com um texto bastante narrativo, resultado de estudos Brechtianos realizado pelo grupo, na SP Escola de Teatro, Violentados da Pátria revela acontecimentos em um espaço de ilusão da terra, em referência à Guerra do Paraguai. As personagens falam de uma guerra que não é delas, ou melhor, falam de lutas que travamos o tempo todo, e que não são ou não deveriam ser nossas. O grupo dá uma atenção especial ao imagético - na precisão de movimentos que são plasticamente impactantes, principalmente para a plateia que os vê de um ponto mais alto; na interação com objetos cênicos quando, por exemplo, manuseiam um paninho numa alusão a um bebê que acabara de nascer; e na relação mesmo de uns com os outros quando da forte cena de estupro coletivo de uma mulher, esta, culpada pelo acontecido. Os atores procuram atingir as angústias de uma forma geral e o fazem apropriando-se de depoimentos, ora pessoais, ora de outros. Falta um pouco de espaço para o pensar, do não estabelecimento de conceitos, com exceção da diversidade, que se exprime na manutenção dos sotaques de cada um dos atores.

O ÚLTIMO DOCE
No último dia de apresentações do 13º Festival de Cenas Curtas do Galpão Cine Horto, deparamo-nos com um trabalho singelo: O último doce! Encenada pelas atrizes e amigas, Alice Vieira e Cora Rufino, a cena conta com delicadeza a força das lembranças de infância, quando uma das personagens decide voltar às suas origens, e a busca pelo espaço no mundo, da outra, que não cabia em seu lugar.

A cena surgiu de um processo de trabalho teatral em que a atriz, Alice, deveria revisitar sua infância e, como ela já havia se mudado, há tempos, do lugar onde passou a mesma, resolveu, então, voltar ao bairro onde crescera. Não conseguindo vislumbrar sua cena como monólogo, convida Cora, vinda de terras longínquas (Roraima) e que sempre se pautou pelo espaço (aquele que não a comportava), para complementar seu trabalho.

O tempo passa e a personagem já se vê com uma definida ruga na testa – evidenciada despropositadamente pela iluminação – motivo de vergonha para ela. Mas precisa voltar ao bairro onde crescera e chega, assim, à mercearia do Sr. Geraldo, alguém que muito lhe marcou a infância e de quem percebeu sentir saudades somente ao revisitá-lo e percebe, no instante em que o vê, as marcas da vida: uma boca sem dentes; mas, também, um sorriso estampado quase como se dissesse – eu não me importo. Mas ela, sim, insiste em se preocupar com a passagem do tempo, com a efemeridade da vida, e no que pode ter perdido, deixado para trás. Ao lado, alguém que constrói a sua vida em uma preocupação constante com o espaço, seus limites e seu cabimento. Este espaço que a define e a demarca, porque veio de terras longínquas onde tudo terminava, tinha fim. E, assim, tenta, continuamente, desbravar esses limites.

Sem objetos de cena visíveis, a personagem de Alice começa a contar a sua história, ali, no meio do palco desnudo. Aos poucos, a personagem de Cora inicia uma afinada construção de cenário que vai sendo modelado, ao som da narrativa da outra, através de uma bucha molhada em um balde com água. Os objetos de cena vão surgindo – cadeiras, portas, o próprio Sr. Geraldo - e as narrativas das personagens vão se esbarrando ao vislumbrarmos a primeira personagem em uma cadeira imensa, enfatizando uma relação com espaço que ela não propõe, e no evaporar da água, numa alusão ao tempo que a personagem de Cora não discute. A cena termina com uma enorme porta escura onde uma personagem desaparece ao apagar das luzes.
Com direção de Anair Patrícia e dramaturgia de Alice Vieira, em cena, O último doce  consegue na metafórica elaboração do cenário o encontro das duas personagens em uma sutil interseção desses sentimentos, na medida em que a água ocupa e aos poucos evapora. Assim, tempo e espaço se esbarram.

CAFÉ DA TARDE
A terceira cena da última noite do Festival tem como cenário três cadeiras e três mulheres à espera de um despretensioso Café da Tarde, que se revela numa verdadeira catarse para essas mulheres fúteis, portadoras de um distúrbio neurológico evidenciado pelos tiques, reações rápidas, espasmos ou vocalizações que ocorrem repetidamente da mesma maneira com considerável frequência. É uma referência clara à  síndrome de Tourette, objeto de pesquisa do trabalho das atrizes Fernanda Jannuzzelli, Aline de Almeida Olmos e Janaina Iszlaji. Ao trazer os trejeitos desse distúrbio para o cotidiano a cena resvala no absurdo e, assim, vai se instalando um humor desconfortável que acaba por envolver a plateia. Para nós, o tempo da cena é estranho e, aos poucos, vamos constatando a falta de afinidade das personagens que se comunicam através de diálogos clichês -“está frio aqui” – que, aos poucos, vão se dissolvendo em expressões recheadas de palavras ríspidas e, muitas vezes, deselegantes, despejadas sem pudor. Nesse contexto, o silêncio é desconfortável, como realmente o é para aqueles que não se entendem.

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