quinta-feira, 21 de junho de 2012

Exercício de escrita crítica sobre o 13º Festival de Cenas Curtas do Galpão Cine Horto

por Marcos Coletta


Os textos abaixo são de cunho experimental, na tentativa de exercitar ferramentas de elaboração, comunicação e discussão de pensamentos e impressões suscitados a partir das cenas vistas no 13º Festival de Cenas Curtas do Galpão Cine Horto.

Admito certa dificuldade em exercer a função do crítico teatral, que além de fruir, precisa analisar a obra com os aparatos técnicos e culturais que possui para a construção de observações ao mesmo tempo subjetivas e profissionais. Diante disso, escolhi o formato de resenha crítica – textos mais breves e simples que situam as propostas e comentam alguns aspectos de cada uma delas.

Importante frisar que os textos a seguir são conseqüência direta do que assisti, na condição de espectador comum. Todas as críticas foram escritas antes dos debates posteriores e sem o contato com as críticas postadas no site do Festival de Cenas Curtas, para que eu pudesse ser fiel às minhas impressões pessoais e primeiras. Ressalto ainda que todo o material produzido é apenas um ponto de vista.

Cena-Espetáculo | 30/05/12
No primeiro dia do 13º Festival de Cenas Curtas, o projeto “Cena-Espetáculo” reuniu quatro cenas com duração de 15 minutos disputando a oportunidade de se transformarem em espetáculo de longa duração com o aporte do Galpão Cine Horto. Diferentemente dos outros dias do Festival, o “Cena-Espetáculo” não funciona por voto popular, já que possui um júri especializado que escolhe a cena vencedora a partir de critérios artísticos mais aprofundados. Portanto, espera-se destas cenas propostas e apontamentos para seu desenvolvimento em uma obra de maior fôlego.

A primeira cena, A noite devora seus filhos, é criação de um destacado núcleo de artistas de Belo Horizonte que há algum tempo trabalham em parceria em diversos projetos como o Grupo Espanca!, e o Coletivo Paisagens Poéticas: Alexandre de Sena, Gustavo Bones, Mariana Maioline, Renata Cabral e Glaucia Vandeveld. O texto – um conto onde uma menina presencia a mãe sobre uma mesa de bar a relatar histórias e memórias de angústia, violência e afetividades, é de autoria do aclamado diretor e dramaturgo argentino Daniel Veronese, bastante em voga ultimamente. À primeira vista, chama à atenção a cuidadosa direção de arte, demonstrada em composição simples, mas sofisticada, de cenografia, espacialidade, trilha sonora e iluminação. Diversos objetos cotidianos surgem em desordem bem elaborada para a manipulação das atrizes Renata Cabral e Glaucia Vandeveld. Alexandre de Sena e Jésus Lataliza operam sonoplastia e iluminação in loco, ora como técnicos e contra-regras à vista do público, ora como parte integrante da ação, propondo um jogo despojado, porém solene. Apesar de uma proposta bem definida, um ruído parece existir na combinação entre a plasticidade da cena, o jogo dos atuantes e o texto. Em alguns momentos a cena perde seu canal de comunicação com o espectador, se tornando narração de difícil penetração, que não fortalece o movimento poético e sutilmente contínuo que se propõe em torno de uma relação semiótica com os diversos objetos postos em cena. A atuação se concentra na narração dramatizada do texto, iniciada de forma mais distanciada para se deixar carregar emocionalmente no fim, mas esta transição acaba se revelando abrupta e pouco justificada, quando percebemos que as atrizes-narradoras se inflamam, em tom de quase protesto, contra algo que não chega a se impor como causa. Um teor político se esboça, mas não define seus contornos, carregando a cena com uma severidade turva. Ainda assim, mesmo com estes descompassos de elementos, é possível captar forças individuais no texto, nas atrizes e no espaço/clima criado, que carecem de melhor equalização e integração em conjunto.

A segunda cena, O Hospício somos nós, dirigida por Byron O’Neill, traz duas personagens indeterminadas, em tempo e espaço igualmente indeterminados, fazendo da inação a própria ação dramática – características básicas do Teatro do Absurdo identificado em Beckett, Arrabal e Ionesco. Byron tem habitado recorrentemente este universo em suas últimas direções e criações dramatúrgicas, algumas mais bem sucedidas que outras, mas em notada busca e afirmação de uma identidade artística. A cena tem cenário, figurino e iluminação bastante elementares – o palco nu é composto de três banquetas, uma corda de enforcamento, um serrote e uma boneca de plástico nua, tal essencialidade sugere que a cena depositará na relação entre as personagens e na força do texto a sua pertinência. Porém, falta às atrizes estofo para passearem com mais propriedade pelo universo proposto. Apesar de atingirem momentos vigorosos, transparecem certo descuido não intencional, resultado de falta de rigor da direção, algo que deveria ter sido alvo de maior atenção já que o texto, por si só, não sustenta a dinâmica cênica. Em Beckett, os textos aparentemente sem sentido e desprovidos de ação carregam contundente discurso crítico a respeito da degradação das relações sociais, da desilusão frente à perda das utopias, da deturpação de valores morais, da violência e da desvalorização do homem, através de um humor cético e irônico, intimamente ligado ao seu contexto: a própria paralisia da humanidade diante das ruínas de um mundo pós-guerra. Desta forma, para se enveredar pelo Teatro do Absurdo hoje parece necessário, antes de tudo, ultrapassar o caráter histórico do gênero e encontrar seu contato com as questões da atualidade, que são, mas não são as mesmas de outrora. O Hospício somos nós revela uma tentativa de abordagem apenas formal do Teatro do Absurdo, e que, ainda assim, não se concretiza totalmente. Falta à cena um mergulho mais vertical naquilo a que se propõe, para que atinja intensificação da linguagem e integração de algum tipo de sentido, de algum questionamento. A loucura, indicada pelo título da cena, aparece apenas como pretexto para uma erupção desconcatenada de ideias.

A terceira cena, Precisa-se de Artistas, aposta em tratamento singelo de um tema repetidamente discutido, mas sempre pertinente quando bem retratado: o lugar instável do artista como profissional, ser humano e cidadão. A situação é ambientada em uma espécie de casting, onde diversos tipos aparecem para exibir suas habilidades e impressões sobre o “ser artista”. Durante a cena, os atores nos apresentam diversas relações com esta profissão ao mesmo tempo glamourizada e desvalorizada. Sem grande ousadia estética, a cena busca sua força na metalinguagem. Ao final, os atores criam bela composição coletiva, brincando com “a manipulação do ventríloquo” que sugere tanto a ação do ventríloquo em manipular o boneco quanto às amarras pelas quais o próprio artista se submete em sua carreira. A cena garantiu identificação diante de uma platéia composta majoritariamente por artistas, mas, pelo seu nível de simplicidade poderia também se comunicar com um público menos inserido neste universo. Por não demonstrar grandes pretensões quanto ao discurso ou à proposta cênica, a cena não frustra as expectativas que constrói, mas poderia abordar o tema de forma mais inventiva. Porém, o principal incômodo provocado pela cena está no ritmo: as entradas e saídas dos atores necessitam de apuro maior, de timing mais ágil e dinâmico que ajude a conduzir e fortalecer a inocente, mas afetuosa dramaturgia.

A última cena a se apresentar foi Quinze Centímetros, que mistura habilmente diversas referências que vão do cinema americano clássico ao melodrama para apresentar uma fábula clara e bem definida: uma mulher que pretende reduzir seu marido ao tamanho de quinze centímetros, em direta referência sexual e fetichista. O texto nonsense e irônico é uma adaptação do conto homônimo de Charles Bukowski e aborda de forma bem humorada questões sociais e comportamentais relativas à relação homem/mulher como o sexismo, a hierarquia e a dominação. Os atores, também diretores, demonstram ótimo entrosamento, em contracena dinâmica e bem desenhada. O palco vazio se apoia em projeções que interagem de forma criativa com os atores, apontando caminhos para uma utilização ainda mais proveitosa deste recurso. A proposta, por ser clara e direta, gera resultado coerente, já que não se espera outra coisa além do que é realizado. Ao final, a cena prefere a não conclusão e exibe um letreiro que anuncia “Continua ...”, gerando expectativa, como episódios de um folhetim, boa estratégia para que se deixe claro que a cena tem potencial para se desenvolver em espetáculo. Apenas a iluminação prejudica o conjunto, com concepção quase inexistente, chega a incomodar e enfraquecer a proposta, e merece ser repensada e valorizada, pois pode vir a ser um elemento de grande participação.

Quinta-Feira | 31/05/12
Abrindo a noite, As Tetas de Tirésias veio de Curitiba para apresentar um quadro trash/cult/kitsch sobre a mulher, questionando lugares sexuais, sociais e políticos que circundam o gênero feminino. O discurso é propositalmente caótico, repleto de referências, sem o objetivo de estabelecer uma ação dramática bem definida – o que se pretende ali é expressar uma espécie de manifesto carnavalizado a partir de uma feminilidade e brasilidade deformada. O texto nos remete à antropofagia e ao tropicalismo. O corpo, tendo o seio como metonímia, é apresentado como objeto de descarte, como produto mercantilizado pela sociedade capitalista pós-moderna e degradada. A cena conta ainda com a participação da atriz Marina Viana, do Grupo Primeira Campainha, de Belo Horizonte. Como uma espécie de intérprete/tradutora, Marina performa no início da cena como se realizasse um prólogo, na tentativa de introduzir a estética e o discurso do coletivo curitibano para o público. Pelo conjunto, a cena se adequa ao que pretende, mas fica explícito que a principal sensação que ofereceu não foi de engajamento, mas de estranheza e deslocamento. O grito anarcopop das Tetas de Tirésias carece de maior poder comunicativo para se afirmar como manifesto e se direcionar mais ao público e menos à satisfação pessoal de quem o realiza.

A segunda cena foi Acorda Amor!, monólogo da uruguaia radicada no Brasil Florência Santángelo, que já participou dos projetos “Oficinão” e “Pé na Rua” do Galpão Cine Horto, e no Festival deste ano representou o Rio de Janeiro, cidade onde segue sua carreira. O texto nada mais é do que a estória de Bela Adormecida, contada da forma que conhecemos, sem nenhuma pretensão de desconstrução ou releitura do clássico infantil. A cena remete às ideias do Teatro Essencial de Denise Stoklos e do Solo Narrativo de Júlio Adrião, este inclusive assina a supervisão do processo. Florência atua com natural domínio de suas habilidades e apurado magnetismo, em espaço vazio, preenchido por seu virtuosismo (não exibicionista) e pela excelente comunicação com a plateia. Simplicidade, lirismo e delicadeza dão à cena matizes de sonho e fantasia, o que todos esperam de um bom conto-de-fadas, mas, ao ser direcionado ao público adulto, pontua momentos de humor e ironia, afastando a cena do risco de se tornar infantilizada. Florência demonstra grande afeto pela narrativa, e, assim, convence o público de que por mais que se conheça a estória, ela merece ser contada mais uma vez. Tocando um acordeon, a atriz cria pontes com suas próprias raízes ao cantar uma canção de ninar em espanhol. A cena mais modesta e bem executada da noite.

A seguir, Alexandre de Sena trouxe O que não vaza é a pele, contando com as participações cênicas dos artistas Jésus Lataliza, Byron O’Neill e MC Matéria Prima. A cena é genuinamente um manifesto real contra o racismo, o preconceito e a descriminação, a partir de um acontecimento verídico ocorrido com Alexandre em 2011: o ator foi espancado por policiais em Blumenau/SC, aparentemente por questões raciais. Já de início fica claro que esta criação não se pretende uma cena tradicional, mas um espaço aberto de opinião e protesto. Alexandre relata uma fábula irônica sobre uma cidade que nunca havia visto um homem de cor, e que por este motivo, repudia o elemento estranho que abala a paz, a ordem e os bons costumes dessa sociedade reacionária. Para quem conhece o ator e sabe do ato violento que sofreu, a cena alcança plena compreensão, mas para o espectador alheio, é possível que haja lacunas de recepção, já que a narrativa se molda sobre referências específicas e às vezes pouco explicadas, como se toda a plateia soubesse de antemão os fatos reais que inspiram a performance. Pensando neste problema, Alexandre utiliza entrevista real sobre a violência que sofreu televisionada em programa jornalístico, mas, mesmo assim, seria possível questionar se a própria entrevista é fictícia, produzida para a cena. O momento mais impactante ocorre quando diversos espectadores, amigos do ator (alguns inclusive presenciaram o fato em Blumenau), saem da plateia e ocupam o palco, construindo um quadro de manifestantes calados, mas que se impõem na presença de suas fisicalidades e de mensagens que estampavam em camisetas, cartazes ou mesmo escritas em seus corpos: há homens, mulheres, negros, brancos, crianças, deficientes físicos, usuários de maconha, militantes de movimentos políticos como o “Fora-Lacerda” e a “Marcha das Vadias”, entre outros, enquanto MC Matéria Prima traz o engajamento do hip-hop em seus versos. A questão é inegavelmente pertinente, mas como todo manifesto político, corre-se o risco de se tornar partidário ou maniqueísta. Em certos momentos quase há a identificação do ator/personagem como uma espécie de herói ou mártir, o que, felizmente e sabiamente, não chega a acontecer. O teatro político, para não se tornar pejorativamente panfletário, deve apresentar menos a insistência de defesa de um único ponto de vista (por mais justificável que seja) do que o confronto dialético entre ideias, fatos e opiniões contrastantes, oferecendo a crise ao espectador e deixando para ele a tomada de consciência e elaboração de sua própria opinião.

Byron O’Neill assina dramaturgia e direção da última cena da noite, Sinto Muito: Acabaram-se os Pães, mais uma de suas incursões pelo universo do absurdo e de notada influência beckettiana. Em clássica situação do Teatro do Absurdo, dois personagens inverossímeis, presos em lugar indeterminado, constroem relação de dependência, fragilidade e dominação. Há, inclusive, um personagem chave e misterioso pelo qual se espera, e que aparentemente solucionaria a angústia e a apreensão dos personagens – não há como não se lembrar de “Esperando Godot”. Aqui, Irene, uma garotinha mimada, alimenta seu peixe, Otávio, em troca de truques e acrobacias. A menina realiza seus caprichos através de seu animal de estimação, mas se revela também manipulada por ele, em jogo constante de troca de status, chantagem e falso afeto. Mas, assim como em O hospício somos nós, é incipiente a construção de camadas de sentido ou discurso por trás da fábula. A cena acaba chamando atenção mais pela complexidade e plasticidade de seus aparatos técnicos (uma atriz pendurada em um balanço a cinco metros de altura e um ator dentro de um enorme aquário) do que por sua proposta dramatúrgica. O registro infantil dos atores cria desconforto, pois, por não ser bem dosado, se torna ingênuo e ilustrativo. Falta ironia e certa perversidade por trás da relação aparentemente inocente entre Irene e Otávio. Ao final, diferentemente de Godot, que nunca chega, Carmem, a personagem enigmática, surge, na pele de Marcelo Veronez, que canta “O Show já terminou”, de Roberto e Erasmo, em performance hilária e envolvente, sugerindo que além do fim da cena, é também o fim da relação entre aqueles personagens, pois o que garantia sua ligação, o pão, acabou. A inusitada presença de Carmen traz novo fôlego e atrativo à cena, que já havia esgotado seu interesse.

Sexta-feira | 01/06/12
Antes do fim foi a primeira a se apresentar, realizada sobre belo cenário confeccionado em palha seca, induzindo, no primeiro momento, uma proposta rural ou regional. Mas a cena não habita este lugar comum, pois na verdade se trata das “noites infernais” vividas por um casal em crise, que já não se suporta, onde uma esposa irritantemente histérica controla e sufoca um marido passivo e abobalhado. O cenário representa “o mato que deixaram crescer” em sua casa/relação e que, além de tudo, já seca. A cena conta também com um músico que executa um acordeom, pontuando momentos musicados que colorem a encenação. Os atores são jovens, e em alguns momentos demonstram sua pouca experiência, mas apesar disso, criam jogo preciso e bem desenhado, apostando em excessiva teatralidade. A linha de ação passa por altos e baixos, mas consegue despertar a atenção no fechamento absurdo da cena, quando o marido se liberta de sua subordinação e dá dez tiros na esposa. Ela ainda se levanta, e deixa claro, em brincadeira metateatral, que a personagem só deixará o marido em paz quando bem entender. Antes do fim consegue tirar boas risadas do público sem apelar para o humor grosseiro, em dramaturgia leve e inteligente.

Firmes Destilados é, antes de tudo, surpreendente. Laura Bastos dirige os atores Gisele Milagres, Maíra Cesarino e Marcelo Cordeiro em adaptação do texto “Crimes Delicados” de José Antônio de Souza – um casal de alta sociedade com tendências psicopatas que decidem matar sua empregada. De início, algo parece deslocado e fora do tom, dando a impressão de uma proposta cênica equivocada. O casal dialoga em língua inventada, pesquisa que este mesmo núcleo de artistas iniciou no espetáculo “Arande Gróvore”, mas diferentemente deste, que cria neologismos de fácil apreensão, o alfabeto da cena demora um pouco para se fazer entender (e em quinze minutos, nada deve demorar muito). Mas com a entrada da empregada todos os elementos começam a fazer sentido. Ela fala em claro e bom português, o que deixa a entender que a língua dos patrões remete ao seu alto status social, ou mesmo à ideia de estarem psicologicamente deslocados da nossa realidade. Para além destas hipóteses, a diferença de linguagem entre patrões e empregada polariza a relação e deixa explícito que estão em lados opostos. Gisele Milagres conquista o público atuando de forma solta e muito à vontade, em ótimo timing. A partir de sua entrada, a cena cresce e envolve, intensificando e justificando sua estética trash e absurda. O público parece não acreditar no que vê a cada entrada e saída da empregada, que é espancada, esfaqueada, leva tiros e chega, no ápice da cena, a ter sua cabeça estraçalhada por um taco de golfe, mas sempre retorna para a surpresa de seus patrões, como em um desenho animado. Por último, traz um carrinho de supermercado abarrotado de vísceras, em finalização apoteótica da cena. Uma proposta arriscada, que poderia ter sido um grande equívoco, mas que revela seu mérito ao se equilibrar muito bem neste limite.

De Brasília vem o monólogo biográfico Trajetória PL, que conta a história de um travesti de 16 anos envolvido no submundo das drogas e na prostituição. O jovem ator Pedro Silveira impressiona ao demonstrar grande maturidade dramática para literalmente encarnar com consistência um personagem tão amplamente tratado de forma rasa, estereotipada e preconceituosa por novelas, programas de humor e besteiróis teatrais. Trata-se de aguçada construção de personagem. Sem esclarecer se é documental ou ficcional (sendo na verdade um misto de ambos), o relato parece extraído de entrevista real feita com um travesti, tamanha sua verossimilhança. Hora alguma o ator se revela, não há distanciamento, e, por isso mesmo, é difícil identificar o que é realidade ou ficção. Mas o verdadeiro discurso se estabelece nas entrelinhas, pois apesar de ser conduzida estrategicamente pelo humor, a cena revela, em viradas bem localizadas do texto, a degradação e as mazelas que marginaliza e estigmatiza a maioria dos travestis do Brasil. O riso da plateia gradualmente se transforma em silêncio, constrangimento e reflexão, através de sutil desenvoltura dramática de texto e atuação. Sem em nenhum momento se pretender denúncia ou protesto, a cena é extremamente política. Contundente exemplo de como propor questionamentos sobre os problemas sociais do país sem apelação panfletária, sem qualquer pretensão catequizante ou conversiva.

Em Bar da esquina, última cena da noite, a fábula é simples: um bar recebe a visita de um cliente misterioso que aguça a curiosidade do proprietário. Mas seu diferencial se dá na escolha em trabalhar com espectadores para compor a cena e contracenar com os atores, o que é sempre arriscado e imprevisível. Wesley Rios, ator, diretor e co-autor parece consciente de tal risco e busca criar aparatos de controle e segurança para a condução da cena, assumindo visivelmente a coordenação de toda a encenação. Nos primeiros minutos acompanhamos as ações do proprietário do bar, interpretado por Thiago Macedo, em bem executada cena muda até a entrada do cliente desconhecido (Wesley) que irá estabelecer o conflito. A introdução do diálogo, de certa forma, enfraquece a cena, cortando a expectativa e o envolvimento com o que vinha sendo construído até então. Os diálogos iniciais, banais e inexpressivos, são contrastados com a notícia de um incêndio em um orfanato que matou as crianças. Com isso, há uma tímida tentativa política do texto em questionar os valores morais, a fé, e a compaixão cristã como prerrogativas para a nobreza de espírito. Usando a música como efeito de distanciamento e interrupção de possível identificação, a cena termina com irônico coro da música “Ai se eu te pego” de Michel Teló, hit pegajoso e alienado da cultura popular brasileira. Crias da ZAP18, os atores-criadores demonstram identificação com a pesquisa alinhada à estética brechtiana, ainda que seu pretendido teor político se perca na tensão ao se introduzir espectadores na cena.

Sábado | 02/06/12
No penúltimo dia de Festival, a cena de abertura foi Diário do Último Ano, monólogo de Júlia Branco baseado em escritos da poetisa portuguesa Florbela Espanca. O texto é uma costura poética e sensível que dispensa a fábula. Júlia passeia pelo universo apaixonado e tumultuoso da poetisa, que viveu apenas 36 anos – sua morte foi causada por envenenamento, em terceira tentativa de suicídio. O livro “Diário do Último Ano”, escrito em 1930, ano de sua morte, é de teor autobiográfico e retrata atribulações, reflexões, desejos e delírios poéticos de Florbela, na eminência do fim. Para o espectador que não possui essas informações, é possível acompanhar e se deixar levar pela cena na medida em que se permita abdicar do entendimento cartesiano em prol da fruição subjetiva, como ocorre também com a poesia. Fica claro, porém, para qualquer um, que se trata das últimas palavras de uma mulher que permite a chegada da morte, metaforizada em uma bela finalização da cena. Júlia é atriz consciente e nos últimos anos vem desenvolvendo pesquisa pessoal de linguagem bem identificada, pautada na relação entre teatro, dança e poesia, munida de poucos elementos cênicos. Desta vez, atinge grande apuro imagético e força na presença, manipulando pedras e tecidos translúcidos, em oposição de estados de dureza e leveza. Infelizmente, o espaço do Galpão Cine Horto era grande e ruidoso demais para a proposta intimista da atriz, e muitas vezes não se ouvia o que era dito, o que influenciou para uma possível impressão de que se tratava de uma construção hermética. Apesar disso, é sempre interessante que existam cenas como esta em um Festival onde costuma imperar um clima de descontração e diversão efusiva, propondo outro tempo, outra cadência para o acontecimento teatral.

A segunda cena a se apresentar veio de Vitória da Conquista/BA. O Circo de Soleinildo levou ao Cine Horto a cultura popular e o universo mambembe dos circos de interior que viajavam pelo Brasil, principalmente pelo Nordeste, e que viram seu público acabar em disputa desleal com o entretenimento dos meios eletrônicos, virtuais e mais comercialmente elaborados. A cena nos apresenta o velho palhaço Soleinildo e sua trupe que viajam pelo sertão à procura do público perdido. Os atores exibem números de mágica e de lançamento de facas, revelando divertidamente os truques, em gags clássicas – formato conhecido que dificilmente não envolve a plateia. O jogo clownesco conduz a narrativa com humor singelo e afetuoso. Grande destaque para o veículo que transporta o circo, um aparato cenográfico multifuncional muito bem construído e utilizado pelo grupo, que dá a impressão de que realmente foi criado para circular pelas cidadelas da Bahia. Quando um pedaço da cortina cobre acidentalmente um lado da placa com o nome “O Circo de Soleinildo”, os personagens percebem que podem usar uma grande estratégia de marketing: apagar o sufixo “nildo” e se transformar no “Circo de Solei”, em referência ao fenômeno mundial Cirque du Soleil, hoje uma grande indústria do show business que movimenta milhões de dólares pelo mundo (o avesso do Circo de Soleinildo). A cena se torna tocante ao propor o saudosismo dos tempos em que este tipo de circo tinha grande prestígio e sucesso – vem daí as histórias tradicionais que conhecemos daqueles que “fugiram com o circo”, tamanho era seu poder de encantamento. Hoje, tudo isso parece ter ficado no passado, a tradição mambembe se transforma em lenda, e artistas como Soleinildo, os poucos que ainda existem, já não encontram nada além de plateias vazias, descaso e desvalorização de seu ofício. A incursão em áudio de depoimentos reais de pessoas que viveram estas épocas relatando a importância que o circo teve em suas vidas amarra o discurso político e finaliza a cena em tom de compaixão, sob aplausos absolutos.

A terceira cena, 3 da tarde é uma ode ao lirismo e ao romantismo, propondo, a partir da pergunta “o que as pessoas fazem às três da tarde?” uma reflexão sobre nossa impotência diante do correr do tempo, mesmo assim, um convite ao viver com intensidade e sentimento – ideais utópicos, mas sem o desejo do escapismo. A poesia lírica, em seus moldes originais, deve ser acompanhada de instrumento musical, e em 3 da tarde, o músico Luiz Gabriel Lopes usa o violão, símbolo maior do romantismo popular, em diálogo com as atrizes Renata Correa e Brisa Marques, que expressam palavras poéticas, em uma espécie de sarau dramatizado. A direção de arte harmoniza com a dramaturgia, através de figurinos claros e uma composição cenográfica feita de várias gavetas – lugar onde guardamos nossos pequenos objetos, cartas, segredos, memórias que muitas vezes depositamos e esquecemos. Mas aqui, as gavetas estão abertas, soltas, fora de suas cômodas, explicitando o recado da cena: tire suas coisas/sua vida das gavetas, se dê quinze minutos de pausa, de suspensão, antes de voltar ao ritmo veloz e afobado da vida que levamos. Assim como a cena de Júlia Branco, esta propõe outro estado de espírito e quebra com o ritmo igualmente veloz e afobado do Festival de Cenas Curtas para dar lugar a uma fruição estética da vida subjetiva.

A última cena da noite Two Ladies Golfers, Oh Drink, Oh Eat! é uma performance de grande apelo visual, com características da cultura pop e queer. Duas atrizes travestidas de drag queens satirizam condutas de etiqueta e boas maneiras, fazendo referência à nobreza do século XVIII em caprichosos figurinos de época. A composição de elementos causa, primeiramente, grande impacto – há grama artificial, televisores de plasma, torre de taças, mesa com ingredientes culinários e, claro, as próprias atrizes enormes em seus vestidos , saltos e perucas. A ação dramática tenta se suportar na disputa vaidosa das duas ladies que vai de demonstrações de cultura inútil a um verdadeiro desfile de fantasias. Porém, o que parecia ser uma cena de estética trash e extravagante, se transforma em exercício de mau gosto. Em acumulação desacertada de elementos, a cena cresce em equívocos até se tornar desagradável. A disputa culinária nauseabunda poderia ter sido um recurso muito bem utilizado não fosse sua falta de propósito. No clássico filme underground “Pink Flamingos”, o conjunto de cenas bizarras, sob produção grosseira e mal acabada, é uma experiência radical e consciente do diretor John Waters, no único intuito de chocar os padrões de bom gosto da provinciana cultura estadunidense. Two Ladies... quase se pretende ao mesmo propósito, mas não se verticaliza como tal, e assim, não escandaliza nem provoca, apenas constrange. A introdução de dois cachorros em cena, como lulus das duas donzelas, divide a reação da plateia que se aflige ao ver os animais puxados sem cuidado por suas coleiras e perdem o interesse pela situação cênica. A existência de um terceiro personagem, uma velha caricata, parece ter a intenção de servir como ponte de comunicação e mediação com o público, mas não consegue cumprir sua função, se limitando a realizar números cômicos deslocados e se torna mais um elemento desconexo. Por fim, a sujeira deixada em cena é resultado metafórico da proposta.

Domingo | 03/06/12
Um jovem núcleo de atores alunos da SP Escola de Teatro apresentou Violentados da Pátria, cena brechtiana que une fatos históricos com depoimentos pessoais sobre problemas sociais da atualidade brasileira. A ação inicial retrata a Guerra do Paraguai, onde o termo “voluntários” ironiza a formação dos “Corpos de Voluntários da Pátria”, órgãos de alistamento compulsório para a Guerra. Para o Brasil, como para todos os países envolvidos, a Guerra trouxe consequências sociais, geográficas e populacionais, que influem na configuração atual de nossa nação. Muitos dos alistados eram negros escravos, ou pobres que não tinham recursos para se esquivarem da convocação, o que assinala a onipresente questão da exclusão social. Os atores, em marcada atuação em coro, criam imagens de medo, desesperança e violência. A área de cena, em formato de corredor coberto de terra, insinua a sofrida caminhada destes voluntários até a guerra. A atuação coletiva fica ainda mais demarcada nas pontuações musicais cantadas em uníssono. De forma brusca, toda essa visualidade é quebrada quando as luzes frias do teatro e uma borda de lâmpadas fluorescentes nas laterais da passarela se acendem e os atores assumem suas pessoalidades em depoimentos sobre fatos e desigualdades referentes à cidade de São Paulo – metrópole símbolo da miscigenação cultural do país, e dos atritos resultados por ela. Assim, criam-se relações diretas entre as deficiências sociais atuais e as heranças do passado. Com um discurso politicamente correto e uma estética brechtiana tecnicamente bem realizada, a cena se resolve como um bom exercício temático, mas que como obra de arte e veículo de opinião poderia ter ido além do exercício, propondo linguagem e identidade próprias do grupo e menos um manifesto generalizado

A seguir, O último doce conta a estória de uma mulher que ao notar seu envelhecimento decide retornar ao passado, simbolizado pelo reencontro com o dono da antiga mercearia frequentada em sua infância. Enquanto a atriz Alice Vieira assume o papel de narradora, Cora Rufino contrapõe a ação literária criando no chão, através de desenhos com um pano úmido, um cenário inventivo. Assim, nos deparamos com a narradora, antes em nenhum lugar, sobre uma enorme cadeira, logo depois, vemos surgir um aquário, uma porta, e até o Sr. Geraldo, dono da mercearia – sempre em contraste de dimensões com as atrizes. Cora também faz incursões textuais que fortalecem a fábula na intenção de refletir a relação conflituosa que travamos com tempo e espaço, na vida cotidiana e no passar dos anos. Os próprios desenhos são tentativas de demarcação geográfica de um lugar de enunciação, que se apagam ao evaporar da água, revelando a efemeridade das coisas, dos fatos, das lembranças. Ao mesmo tempo, a situação se remete à passagem da juventude à vida adulta, e à complexidade que as coisas mais simples adquirem quando deixamos o mundo infantil. O contraste harmonioso das atrizes, que cria interessantes variações de ação e narração, merece ser verticalizado para se tornar, evidentemente, o aspecto condutor da cena.

Café da Tarde é um divertido e arejado quadro cômico sobre a relação histérica e fútil entre três amigas que vivem de aparências e banalidades. Munidas de saltos coloridos e roupas coladas em citação oitentista, as mulheres se reúnem burocraticamente para um café. A superficialidade dos assuntos tratados e o desconforto do silêncio apontam para o esvaziamento das interações sociais e para a alienação suplantada por clichês e lugares comuns. Quando o jogo de aparências se esgota, inicia-se uma série de opiniões de sinceridade extrema e ofensiva, como se cada mulher deixasse escapar o que realmente está pensando e sentindo a respeito das outras, artifício que sustenta a cena e arranca risadas do público. A cena se apoia em texto astucioso e no bom timing de comédia das três atrizes, fortalecidos por informações corporais que sugerem algum tipo de desvio psicológico das personagens, mas que, nem por isso, cai na leitura óbvia da loucura. Não há grandes questionamentos ou assuntos em discussão, o universo é leve e se presta ao entretenimento rápido, característica de sitcoms e programas de humor urbano e contemporâneo que retratam o cotidiano em situações hilárias. Formato amplamente testado e aprovado pela mídia de massa – garantia de conquista do público menos exigente.

A última cena do 13º Festival de Cenas Curtas foi Gravidades que propôs uma experiência sensorial de bela concepção visual, combinada a paisagens sonoras e dramaturgia criativa que se identifica com o Realismo Fantástico. Os impactantes minutos iniciais criam imagens de pura fruição estética, onde as atrizes criam desenhos corporais no espaço localizadas em dois “cenários pessoais”, que se fundem aos seus corpos. Com a entrada do texto, acompanhamos duas histórias paralelas que retratam o cotidiano comum de duas mulheres caracterizadas pela oposição. Este contraste é fortalecido por todos os elementos da cena e polariza as personagens, que não se relacionam entre si diretamente, mas criam diversas pontes de comunicação através da sobreposição de narrativas. Ao relatarem suas vidas ordinárias, as mulheres dão indicações de inadequação, insatisfação e deslocamento, revelando gradual modificação em suas percepções de mundo. A cena final, onde as atrizes saltam em camas elásticas integradas ao cenário, sugere que as personagens romperam os limites da gravidade e passaram a desafiar as leis da física, em metáfora da transgressão de seus universos cotidianos. Porém, as muitas aberturas e possibilidades que o título e a própria dramaturgia oferecem não deixam claro qual é o assunto central da obra, e mesmo que as estórias sejam refinadas e atraentes, é difícil assimilá-las diante de uma carga tão grande de informações. Todos os elementos da cena parecem querer dizer algo importante, e acabam disputando a atenção e a leitura do espectador. Assim, o denso texto entra em conflito com o apelo visual e imagético.

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